sábado, 23 de junho de 2007

O ofício de sociólogo


Pierre Bourdieu apresenta uma teoria da prática na Sociologia contemporânea, buscando inculcar uma certa atitude científica em relação à prática profissional do sociólogo, o qual deve romper com os paradigmas do discurso epistemológico, que oferecem a todo tempo o risco de incorrer em modelos prontos. Essa atitude científica implica na submissão dos procedimentos metodológicos à uma razão epistemológica cética, questionadora e vigilante.

“Semelhante tarefa, propriamente epistemológica, consiste em descobrir no decorrer da própria atividade científica, incessantemente confrontada com o erro, as condições nas quais é possível tirar o verdadeiro do falso, passando de um conhecimento menos verdadeiro a um conhecimento mais verdadeiro” (p. 17)

Questionar a prática da ciência, para além das regras estabelecidas pelos metodólogos, representa o o questionamento dos próprios objetos, os quais devem ser “conquistados, construídos e constatados”. (p.22) Se o conhecimento é conquistado contra a ilusão do saber imediato, o pesquisador deve, portanto, atentar para o inesperado, romper com as relações aparentes e trabalhar na emergência de um novo sistema de relações entre os elementos, um sistema de relações objetivas, construído independentemente das opiniões e intenções do sujeito investigado.

Para a conquista do fato, faz-se necessário uma ruptura com as pré-noções. Essa ruptura não é fácil, devido à própria influência da linguagem comum edificada no discurso científico, cujos pressupostos são assumidos inconscientemente. Abdicar das pré-noções, porém, significa romper com as ilusões de transparência, implicando, sobretudo, no questionamento da relação pesquisador-objeto, suas motivações e interesses, em última instância, acerca do estudo que pretende empreender. Para o autor, o saber sociológico é uma construção intelectual constante em oposição ao saber espontâneo. A dificuldade em se livrar das pré-noções é diretamente proporcional ao risco de se cair no profetismo social. Contrariamente, a sociologia possui a tarefa de desvendar as modalidades de atuação das diferentes formas de dominação escondidas nos diversos mundos sociais. É necessário, ainda, voltar-se contra a teoria tradicional, posto que estas, pretensamente universais, tiram da lógica do senso-comum seu projeto fundamental. Bourdieu propõe uma teoria do conhecimento sociológico capaz de superar as armadilhas do objetivismo, determinismo sociológico, do subjetivismo e voluntarismo individualista.

Bourdieu retoma os princípios Durkheim, de que os fatos sociais devem ser construídos para que se tornem objeto de estudo. Na construção do objeto é preciso separar as categorias que pré-constroem o mundo social e que se fazem esquecer por sua evidência, o que significa levar a campo conceitos sistêmicos, noções que pressupõem uma referência permanente ao sistema completo das suas inter-relações, que subentendem uma referência à teoria. O modelo teórico é reconhecido pelo poder de ruptura e de generalização, depurando as relações que que definem os objetos construídos. A construção do fato social consiste, ainda, em delimitar claramente um segmento da realidade, o que significa, na prática, selecionar determinados elementos de uma realidade plural e descobrir por trás das aparências um sistema de relações próprias ao fato social estudado.

Após a conquista e a construção do objeto, este deve ser submetido à uma verificação sistemática. A constatação do objeto cumpre o papel de pôr à prova o seu valor heurístico, observando se as preliminares epistemológicas de ruptura e construção atenderam ao objetivo de superação da sociologia espontânea, evitando as recorrências ao senso-comum. Cabe ressaltar que os fatos só respondem àquilo que é perguntado pelo pesquisador. Assim, se interrogados sob pré-noções e receituários metodológicos, os fatos, destituídos de valor, não oferecerão nada que valha a pena ser dito.

“Toda experiência bem construída tem como efeito intensificar a dialética da razão e da experiência, mas somente coma condição de que o pesquisador saiba pensar, de forma adequada, os resultados, inclusive negativos, que ela produz e se interrogue sobre as razões que fazem com que os fatos têm razão de dizer não”. (p. 78)

Sob seu ponto de vista, a sociologia é uma ciência que incomoda, pois critica, coloca problemas e traz a baila recalques que se pretendem ocultar. A posição do sociólogo é particularmente ingrata, muitas vezes acusado etnocentrismo, diante das questões que lhe são incessantemente colocadas. Ao mesmo tempo, Bourdieu não ignora o enraizamento social do sociólogo, o qual faz parte de um grupo específico com determinados interesses, esquemas de pensamentos e problemáticas peculiares.

BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude e PASSERON, Jean-Claude. O Ofício de Sociólogo: Metodologia da pesquisa na sociologia. 5ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

Análise de discurso


Não existe apenas uma linha de análise de discurso; existem muitos estilos diferentes com enfoques variados, a partir de diversas tradições teóricas, porém todas reivindicando o mesmo nome. O que esses diferentes estilos parecem ter em comum, ao tomar como objeto o discurso, é que partilham de

“uma rejeição da noção realista de que a linguagem é simplesmente um meio neutro de refletir, ou descrever o mundo, e uma convicção da importância central do discurso na construção da vida social” (p.244)

A análise de discurso é uma disciplina de interpretação fundada pela intersecção de epistemologias distintas, pertencentes a áreas da lingüística, do materialismo histórico e da psicanálise. Essa contribuição ocorreu da seguinte forma: da lingüística deslocou-se a noção de fala para discurso; do materialismo histórico emergiu a teoria da ideologia; e finalmente da psicanálise veio a noção de inconsciente que a AD trabalha com o de-centramento do sujeito.

O processo de análise discursiva tem a pretensão de interrogar os sentidos estabelecidos em diversas formas de produção, que podem ser verbais e não verbais, bastando que sua materialidade produza sentidos para interpretação; podem ser entrecruzadas com séries textuais (orais ou escritas) ou imagens (fotografias) ou linguagem corporal (dança).

A AD trabalha com o sentido e não com o conteúdo do texto, um sentido que não é traduzido,mas produzido; pode-se afirmar que o corpus da AD é constituído pela seguinte formulação: ideologia + história + linguagem. A ideologia é entendida como o posicionamento do sujeito quando se filia a um discurso, sendo o processo de constituição do imaginário que está no inconsciente, ou seja, o sistema de idéias que constitui a representação; a história representa o contexto sócio histórico e a linguagem é a materialidade do texto gerando “pistas” do sentido que o sujeito pretende dar. Portanto, na AD a linguagem vai além do texto, trazendo sentidos pré-construídos que são ecos da memória do dizer. Entende-se como memória do dizer o inter-discurso, ou seja, a memória coletiva constituída socialmente; o sujeito tem a ilusão de ser dono do seu discurso e de ter controle sobre ele, porém não percebe estar dentro de um contínuo, porque todo o discurso já foi dito antes.

A língua não é transparente e homogênea como muitas vezes aparenta ser; isto faz com que ela seja capaz de equívoco, de falha, de deslizes. O equívoco é contra a idéia do sentido único do enunciado; que permite leituras múltiplas. O sentido não está agregado à palavra, é um elemento simbólico, não é fechado nem exato,portanto sempre incompleto; por isso o sentido pode escapar. O enunciado não diz tudo, devendo o analista buscar os efeitos dos sentidos e, para isso, precisa sair do enunciado e chegar ao enunciável através da interpretação.

Partindo do princípio que a AD trabalha com o sentido, sendo o discurso heterogêneo marcado pela história e ideologia, compreende-se que ela não irá descobrir nada novo, apenas fará uma nova interpretação ou uma releitura. Outro aspecto a ressaltar é que a AD mostra como o discurso funciona não tendo a pretensão de dizer o que é certo, porque isso não está em julgamento. Na interpretação é importante lembrar que o analista é um intérprete, que faz uma leitura também discursiva influenciada pelo seu afeto, sua posição, suas crenças, suas experiências e vivências; portanto, a interpretação nunca será absoluta e única, pois também produzirá seu sentido.

Para constituir o corpus para análise representativo de um determinado discurso, cumpre entrevistar os atores sociais fazendo a transcrição da gravação feita. Não há um caminho pronto para efetivar a análise, mas após várias leituras poderão ser identificados eixos temáticos, que emergem num movimento em que o enunciado leva ao enunciável e vice-versa, explorando-se marcas lingüísticas cujo funcionamento discursivo irá trabalhar, fazendo os recortes das formulações nas quais aparece tal ênfase. Cabe informar o enfoque analítico que é dado à pesquisa. Qualquer elemento pode ser estudado enquanto marca lingüística ou marca de discurso, podendo ser selecionadas poucas marcas lingüísticas para interpretação. Na AD não é necessário analisar tudo que aparece na entrevista, pois se trata de uma análise vertical e não horizontal. O importante é captar a marca lingüística e relacioná-la ao contexto sócio-histórico.

Deste modo, várias leituras do texto farão com que o analista do discurso estranhe aquelas palavras ou formas sintáticas, pode ser, que marcam o discurso e se repetem, visualizando assim as marcas lingüísticas no material linguageiro. Também é interessante explicar o motivo que induziu a escolha do recorte sócio-histórico, pois este faz parte das condições de produção do discurso, representadas no corpus em análise, bem como a necessidade de ilustrar as condições da constituição do corpus. Após ter delimitado o eixo temático o analista irá trabalhar com este, o que supõe o estabelecimento de “recortes discursivos”, onde se representam linguagem e situação. O recorte resulta da teoria e é uma construção do analista; no estudo do recorte se busca caracterizar as regularidades na formação discursiva, no confronto com sentidos heterogêneos. As regularidades das marcas lingüísticas que aparecem no discurso fazem parte da identidade do discurso acessado pelo sujeito, trazendo sentidos pré-construídos que figuram na memória do dizer da sociedade.

GRILL, Rosalind. “Análise de discurso” in. Bauer MW, Gaskell G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. 3a ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2002.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Análise de conteúdo


Dentro da pesquisa social havia uma certa tendência a subestimar os textos como fonte de pensamentos e memórias. Após o advento da internet, contudo, os pesquisadores demonstraram uma renovação do interesse nessas fontes e, conseqüentemente, na análise de conteúdo e suas técnicas.

A análise de conteúdo pode ser definida de forma clara como uma técnica que permite a produção de inferências de um texto focal para seu contexto social de forma objetivada. Sendo uma interpretação, não pode ser julgada de forma absoluta como uma leitura “verdadeira”, ou como única forma de leitura do texto. Deve ser julgada sim, em termos de congruência com a teoria do pesquisador em relação ao seu objeto de pesquisa. Desta forma, o resultado de uma análise de conteúdo é a problemática a ser explicada.

Os procedimentos da análise de conteúdo reconstroem as representações em duas dimensões. Na dimensão sintática, observando-se que a freqüência de uma palavra incomum pode identificar um autor ou público; e na dimensão semântica, observando-se os sentidos conotativos e denotativos: os ditos, os temas, e os julgamentos de valor. Esses procedimentos permitem ao pesquisador traçar e comparar perfis, através de seus valores, atitudes, estereótipos, símbolos e visões de mundo.

A análise de conteúdo permite ainda diferentes estratégias de pesquisa. É possível construir um corpus de texto como um sistema aberto para verificar tendências e padrões de mudança; traçar um quadro comparativo para identificar as diferenças; construir índices a fim de identificar sinais causalmente relacionados a um fenômeno e reconstruir mapas de conhecimento.

Também são múltiplos os direcionamentos da pesquisa de análise de conteúdo, a qual pode ser: um estudo puramente descritivo; uma análise normativa; trans-seccionais; longitudinais ou longitudinais combinadas com outros dados longitudinais.

Embora a análise de conteúdo trabalhe tradicionalmente com textos, suas técnicas também podem ser aplicadas a imagens. Existem dois tipos de texto passíveis de serem trabalhados: os produzidos no processo da pesquisa e os produzidos com outras finalidades. Todos esses textos podem ser indagados para responder aos questionamentos do pesquisador.

Os textos podem ser selecionados através de amostragem. A amostragem pode apresentar três tipos de problema: sua representatividade, o tamanho e a unidade da amostragem e sua codificação. A amostragem estatística oferece um racional para estudar um número limitado de textos, estratificados numa tipologia hierárquica. A amostragem de agrupamento (cluster), por sua vez, seleciona unidades aleatoriamente, por datas. Amostragem aleatória exige uma lista completa para fazer a seleção, considerando que as unidades de amostragem possam ser facilmente substituíveis.

As unidades de amostragem podem ser físicas, o que ocorre comumente; sintáticas; proposicionais ou temáticas (semânticas). Segundo Bauer, “a representação, o tamanho das amostra e a divisão em unidades dependem, em última instância, do problema da pesquisa, que também determina o referencial de codificação”. (p.198)

A codificação e a classificação das unidades de amostra trazem em seu bojo a teoria e o material de pesquisa. O referencial de codificação compara sistematicamente o conjunto de questões, oferecendo respostas dentro de um conjunto predefinido de alternativas, de acordo com o objetivo da pesquisa.

A técnica de análise de conteúdo se compõe de três grandes etapas: 1) a pré-análise; 2) a exploração do material; 3) o tratamento dos resultados e interpretação. A primeira etapa é uma fase de organização, que pode utilizar vários procedimentos, tais como: leitura flutuante, hipóteses, objetivos e elaboração de indicadores que fundamentem a interpretação. Na segunda etapa os dados são codificados a partir das unidades de registro. Na última etapa se faz a categorização, que consiste na classificação dos elementos segundo suas semelhanças e por diferenciação, com posterior reagrupamento, em função de características comuns. Portanto, a codificação e a categorização fazem parte da análise de conteúdo.

BAUER, Martin W. “Análise de conteúdo clássica: uma revisão”. in. Pesquisa qualitativa com som, imagem e texto. 3ª ed. Vozes, Petrópolis, 2004. (p. 189-221)

História Oral


Na tradição historiográfica positivista, os depoimentos e testemunhos orais eram considerados inadequados devido à sua pouca confiabilidade. Entretanto, essa perspectiva mudou a partir da renovação proposta pelo grupo dos Annales, a Nouvelle Historie, na qual há um privilegiamento das histórias do cotidiano e das mentalidades, apropriando-se da interdisciplinaridade para compreender uma determinada história-problema, ressaltando os aspectos sociais, coletivos e comparativos, através da utilização não só de fontes tradicionais, mas de novas fontes como a tradição oral e os vestígios arqueológicos.

Alguns cientistas sociais ainda vêm os depoimentos orais como fontes subsidiárias, através da qual é possível fazer o cotejo das fontes primárias, complementando-as e verificando-as. Outros ignoram a metodologia, a partir de uma visão positivista e etnocêntrica, desconsiderando que todo documento é questionável. Assim, cada vez mais faz-se necessária a análise das fontes, a fim de garantir uma aproximação maior das verdades relativas. Todo documento está sujeito a leituras, assim também estão as fontes da História Oral.

“ Pois é como discurso que a memória evidencia todo um sistema de símbolos e convenções produzidos e utilizados socialmente” (p.47)

Dessa forma, a História Oral permite ao cientista social descortinar visões não estabelecidas pelo status quo, dando palavras a indivíduos que não deixariam nenhum testemunho histórico e, conseqüentemente, resgatar as discussões sobre liberdade e determinismo; estrutura social e ação humana.

Uma problemática presente na História Oral é a seletividade e o esquecimento presentes na memória individual. Cumpre compreender que tanto o silêncio, quanto o esquecimento são indícios significativos para o pesquisador, pois o discurso oral do indivíduo também é parte do discurso social. Através do discurso é possível perceber os ditos e interditos existentes na relação homem-sociedade e como estes influenciam a construção da memória coletiva.

“A credibilidade da fonte oral não deve ser avaliada por aquilo que o testemunho oral pode frequentemente esconder, por sua inexatidão para com os fatos, mas na divergência deles, onde imaginação e simbolismo estão presentes” (p.73)

Deve-se considerar ainda que não há neutralidade na relação entrevistador-entrevistado, porquanto o entrevistador direciona a entrevista para os caminhos que lhe interessam percorrer, já que as memórias são reconstruídas durante o diálogo.

FREITAS, Sônia Maria de. História Oral. Possibilidades e procedimentos. Humanitas. São Paulo, 2002

O poder simbólico de Pierre Bourdieu



O autor convida o leitor à uma sociologia reflexiva, cuja trajetória permite uma postura realista, orientada para otimização do uso dos recursos, especialmente do tempo disponível para a pesquisa. Embora, como alega o próprio Bourdieu, o homo academicus goste do acabado, o texto em questão, resultado de um seminário, propõe-se a apresentar os processos do trabalho de pesquisa, o seu know-how. Para ele, o estado da arte nas Ciências Sociais encontra-se na capacidade de teorizar sobre objetos empíricos aparentemente insignificantes, construindo assim um objeto.


Para construir um objeto, contudo, faz-se necessário questionar suas pré-noções antes de aprender o modus operandis da produção científica, porque a única maneira possível de adquirir esse conhecimento é através da observação prática de como reage este habitus científico. A transmissão do habitus pode se dar por indicações práticas ou correções feitas na prática.


Uma das coisas mais importantes na pesquisa científica é exatamente a construção do objeto do conhecimento, através da união de opções teóricas e técnicas empíricas, que podem ser multivariadas, a fim de quebrar o monoteísmo metodológico e jogar novas luzes sobre diversos ângulos do mesmo prisma. O cientista social deve estar atento aos por menores dos procedimentos da pesquisa, posto que, a construção do objeto


“é um trabalho de grande fôlego, que se realiza pouco a pouco, por retoques sucessivos, por toda uma série de correções, de emendas, sugeridos por o[sic] que se chama ofício, quer dizer, esse conjunto de princípios que orientam as ações ao mesmo tempo minúsculas e decisivas”. ( p. 27)


O primeiro preceito do método está relacionado à noção de campo, alertando o sociólogo que se deve pensá-lo como um espaço de relações de forças entre posições sociais, que vão sendo desvendadas pelo pesquisador. O grande risco de se cair na armadilha das pré-noções para o pesquisador é não conhecer sua verdadeira motivação de interesse acerca do objeto que estuda. È preciso cercar-se de ceticismo, questionar todos os seus pressupostos e variáveis possíveis, numa atitude ativa e sistemática, alicerçado não só na intuição racional, como também no raciocínio analógico.


Bourdieu aponta a necessidade de rupturas epistemológicas, considerando a dificuldade dessa quebra de paradigmas na medida em que estas foram fundamentadas por um corpo de profissionais. A profissão no saber científico é uma “construção social, produto de todo um trabalho social de construção de grupo e de uma representação dos grupos”, (p.40) os quais possuem um ritual próprio – listas feitas, documentação, procedimentos – para estudar determinados objetos. Desta forma, têm-se uma aparência de cientificidade, sem empreender o verdadeiro trabalho científico, que é a construção do próprio objeto de estudo.


A objetivação participante oferece essa possibilidade de ruptura, porquanto implica em adesões mais profundas e inconscientes sobre o interesse no próprio objeto para o pesquisador que o estuda. É o conhecimento da relação pesquisador-objeto e dos próprios limites da objetivação objetiva, posto que o espaço da interação é pré-construído, guardando em si seus ditos e interditos.


“As estratégias discursivas dos diferentes atores, e em especial os efeitos retóricos que têm em vista produzir uma fachada de objetividade, dependerão das relações de força simbólicas entre os campos e dos trunfos que a pertença a esses campos confere aos diferentes participantes ou, por outras palavras, dependerão dos interesses específicos e dos trunfos diferenciais que, nessa situação particular de luta simbólica pelo veredito neutro, lhes são garantidos pela sua posição nos sistemas de relação invisíveis que se estabelecem entre os diferentes campos em que eles participam”. (p.56)


Destarte, a relação do sociólogo com o seu objeto deve ser objetiva, consciente de suas motivações e interesses sobre o referido objeto, a fim de estabelecer condições mínimas de ruptura com os modelos prontos para que não se incorra numa visão parcial e reducionista com ares de ciência.



BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

A imaginação sociológica: Uma leitura de C. Wright Mills


A consciência humana, latu sensu, está limitada à capacidade de visão do homem comum, circunscrito ao seu derredor. Em função disto, o homem comum não define seus interesses em termos de transformação históricas, pois não se apercebe, na maioria das vezes, das imbricações entre suas vidas e as estruturas sociais devido à ausência de uma qualidade intelectual básica que lhe permita identificar a teia de relações entre a biografia e a história. Tal dificuldade é justificada pela rapidez com que ocorrem as transformações na sociedade, transformações estas que atinge o homem numa escala global.

“A própria evolução da história ultrapassa, hoje, a capacidade que têm os homens de se orientarem de acordo com os valores que amam” (p. 11)

Não é de estranhar que os homens comuns sintam dificuldade de enfrentar a quebra de paradigmas proporcionada pela ampliação dos horizontes decorrentes dessas mudanças. É um período no qual se tem informação sobre tudo e discernimento sobre nada. Contudo, nesse processo, informação e discernimento não são o suficiente para preparar os homens para lidar com o sentimento de inadequação decorrente das transformações. O que se faz necessário, segundo Mills é a imaginação sociológica:

“uma qualidade de espírito que lhes ajude a usar a informação e a desenvolver a razão, a fim de perceber, com lucidez, o que está ocorrendo no mundo e o que pode estar acontecendo dentro deles mesmos.” (idem)

A imaginação sociológica permite a identificação dos reflexos de questões estruturais da sociedade sobre as perturbações na vida individual. Através da imaginação sociológica pode-se entender com mais facilidade a interação do indivíduo com o meio social, uma vez que torna-se passível de se ver, com maior nitidez, as influências deste sobre a trajetória pessoal.

Três elementos fundamentais compõem a imaginação sociológica: a História, a biografia e a estrutura social. Para compreender a experiência individual e avaliar a si mesmo dentro de seu tempo, o indivíduo deve entender como a sociedade veio a ser o que é, como se dá o seu processo de mudança e como sua história está sendo feita. Outrossim, cumpre também analisar a natureza da “natureza humana” em sociedade, que tipos de povos a habitam em particular, bem como as várias institucionais existentes se operam, quais são dominantes, o que mantém sua coesão e o que as impulsionam a mudar. A partir desses questionamentos, segundo Mills, é possível experimentar uma “transavaliação de valores”.

“Para compreender as modificações de muitos ambientes pessoais, temos necessidade de olhar além deles. E o número e variedade dessas modificações estruturais aumentam à medida que as instituições dentro das quais vivemos se tornam mais gerais e mais complicadamente ligadas entre si. Ter consciência da idéia da estrutura social e utilizá-la com sensibilidade é ser capaz de identificar as ligações entre uma grande variedade de ambientes em pequena escala”.(p.17)

Na medida em que os valores coletivamente aceitos são ameaçados vê-se a emergência das principais questões públicas de uma época. Considerando, porém, as limitações no alcance sociológico, é possível que as pessoas não possuam consciência dos valores aceitos, o que torna inócua a ameaça. Este sentimento de indiferença, se generalizado, torna-se então apatia. Este é um dos problemas fundamentais da sociedade de massa, pois tais povos tornam-se apolíticos. Há ainda a possibilidade de não se ter nenhuma consciência de valores ameaçados e ainda assim sentir a pressão da ameaça. Esta inquietação, bem como a já citada indiferença, marcam, segundo Mills, a época atual. E embora Mills tenha escrito este livro em 1959, suas observações permanecem atuais.

O autor faz ainda um contraponto com a década de 30, considerada uma idade política., na qual os valores ameaçados eram reconhecidos, bem como as contradições estruturais que os punham em risco. Este contraponto torna ainda mais evidentes os problemas de nossa época, definidos por uma preocupação, sobretudo, com a qualidade da vida individual ou ainda com a possibilidade de continuar existindo vida individual.

“Para os que aceitam valores herdados, como razão e liberdade, é a inquietação em si que constitui o problema; é a indiferença em si que constitui a questão”.(p.18)

Diante desse quadro a principal tarefa intelectual e política do cientista social é revelar os componentes dessa inquietação e indiferença, as quais eram manifestas principalmente pela literatura, base da cultura humanista. Todavia, esta, de acordo com o autor, tornou-se uma “arte menor”, incapaz de concorrer em comoção com os acontecimentos com a realidade muitas vezes trágica e estarrecedora que a realidade histórica e os fatos políticos contemporâneos apresentam. Sobretudo, não compete à arte a formulação de questões capazes de auxiliar o homem na superação desses sentimentos de inadequação. A abertura para novos começos, segundo Mills, é a promessa da Ciência Social, a qual não pode abdicar de uma análise cultural e política como parte de seu trabalho diário.

Diante da controvérsia sobre a natureza das Ciências Sociais, a proposta do autor é analisar os diversos estilos de trabalho, a fim de ampliar os horizontes sobre a concepção de procedimentos de cada um deles, identificando o que melhor pode servir à imaginação sociológica. Três são as principais tendências: O empirismo abstrato, a grande teoria e a análise social clássica. Todas elas correm o risco de sofrer deformações, por isso a necessidade de esclarecer os seus métodos.

“Dominar o método e a teoria é tornar-se um pensador consciente de si, um homem que trabalha e tem consciência das suposições e implicações do que pretende fazer. Ser dominado pelo método é simplesmente ser impedido de trabalhar, de tentar, ou seja, de descobrir alguma coisa que esteja acontecendo no mundo.” (p.133)

Segundo Mills, os riscos do empirismo repousa numa análise sub-histórica. O dado empírico revela uma visão abstrata da vida cotidiana dos universos sociais, alimentada por variáveis muitas vezes imprecisas, se analisadas fora do fundamento das estruturas histórico-sociais. Outro problema do empirismo abstrato é a dificuldade de eleger problemas substanciais, devido à abundância de fatos. A única exigência é a verificação, a qual se enquadra em processos correlatos e estatísticos. Contudo, fatos acumulados não fazem uma ciência social. A grande teoria, por sua vez, apresenta uma visão bastante estática e abstrata dos componentes sociais, incorrendo ainda no risco de abandonar a História, elaborando conceitos sobre outros conceitos igualmente abstratos. Em contrapartida, o cientista social clássico evita esquemas rígidos de procedimentos, nem se inibe pelos métodos e técnicas, adotando o modo do artesão intelectual. Atenta para a aplicação de certos métodos a determinados problemas, bem como de certas teorias a dados fenômenos. Representa uma medianiz entre o empirismo abstrato e as grandes teorias, pois direciona sua abstração no sentido das estruturas sociais e históricas.

Destarte, o cientista social clássico identifica os procedimentos mais adequados para responder às indagações dos problemas eleitos, problemas esses substantivos. O alinhamento dos problemas, por sua vez, depende dos métodos, teorias e valores. Quanto maior a consciência dos valores envolvidos e dos riscos a que estão ameaçados, mais substantivado estará o problema. Seus escritos revelam uma grande preocupação com dois valores considerados fundamentais, razão e liberdade, por serem co-extensivos com a principal tendência da sociedade contemporânea, a tendência à centralização, à ampliação de organizações burocráticas vastas e do controle do poder nas mãos de uma elite muito pequena.

Considerando que o progresso científico é cumulativo, Mills ainda ressalta a importância de uma “objetividade” na ciência. Em seus escritos, ele interpreta o mundo por uma perspectiva muito influenciada por Max Weber, defendendo uma visão holística de sistemas socioculturais, interdependentes, os quais têm efeitos profundos sobre os valores humanos. Desta forma, Mills sugere que as questões e preocupações sociais sejam formulados como problemáticas científicas, a fim de dar visibilidade à razão, como um valor relevante para uma sociedade democrática livre.

MILLS, C. Wright. A Imaginação Sociológica, Rio de Janeiro. Zahar, 1982.