quarta-feira, 15 de agosto de 2007

História, Ciência e Verdade

As virtualidades da epistemologia histórica só adquirem sua correta dimensão se referidas ao significado maior da própria epistemologia contemporânea. A crescente preocupação com problemas de ordem epistemológica nos diversos campos da atividade científica e na sua reflexão filosófica determinou a introdução desse tipo de análise nas discussões sobre a natureza do conhecimento histórico.

A “crise do conhecimento científico e filosófico no Ocidente”, a partir do séc. XVII, assando pela “crise da metafísica” no séc. XIX, culminando com a “crise do paradigma clássico” nas primeiras décadas do séc. XX, que questionou a arquitetura filosófica do idealismo, bem como as categorias e extrapolações da física newtoniana, provocou a perda dos referenciais absolutos e o questionamento de verdades até então incontestáveis, como as noções de Deus, Verdade, Razão, Belo, etc.

A crise do paradigma clássico refletiu-se de diferentes formas no campo da ciência histórica no séc XX, quer de forma direta, quer de forma indireta, mediada pela influencia de outras ciências humanas, como a economia, a sociologia, a antropologia, a psicologia ou a ciência política. O resultado tem sido discussões ambíguas e intensas sobre as transformações que exigem novas percepções epistemológicas por parte do historiador, como resposta à crise do historicismo, criticado por Popper como uma tendência determinista, cujas pretensões imperialistas são influenciadas pelos interesses políticos dos que pretendiam fazer do seu acesso ao poder uma “inevitabilidade histórica”.

Outras críticas ao historicismo contribuíram para a derrocada da noção de Verdade Absoluta dentro das ciências e, em particular, da ciência histórica; a exemplo da crítica nietzscheana à pretensão filosófica de impor padrões de racionalidade à vida histórica, tratando causticamente a crença evolucionista da sucessão linear – posteriormente desenvolvido por Foucault, ao relativizar os saberes uns em relação aos outros e recusar a visão historicista na história das ciências.

Considerando não haver mais uma Verdade e sim, verdades, dentro das ciências, o campo histórico sofreu redefinições teóricas e empíricas no séc. XX. Surge a corrente estruturalista, que busca o a-histórico nas relações e sociedades: elementos inalterados independentemente do tempo e lugar. Surgem também a New History americana, afirmando a subjetividade radical do conhecimento histórico positivista; o neo-idealismo (Croce e Collingwood), afirmando o caráter presentista e “contemporâneo” de todo conhecimento, inclusive histórico; além da Escola dos Annalles, propondo uma História Total, desvencilhada dos moldes cientificistas e economicistas da História Tradicional, através de novos métodos, problemas e abordagens.

Os novos olhares lançados sobre a História permitiram um alargamento temático dos estudos históricos, com uma efetiva abertura a outras áreas das ciências humanas, revelando uma descoberta revolucionária, quanto ao homem em sua dimensão social, que ainda não desencadeou todos os seus efeitos: a existência de diferentes níveis do real, de múltiplos processos e, portanto, de múltiplas explicações científicas e de “verdades contingentes” aos problemas, em detrimento de uma Verdade Absoluta.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Memória, Mito e História


A memória, em primeira instância, é a presença do passado. É uma construção psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, a qual nunca é a do indivíduo, mas deste inserido num contexto social.

Segundo o historiador Henry Rousso, a memória é o elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros. Essa percepção, no entanto, nem sempre se manifesta da mesma forma. De acordo com o historiador das religiões, Mircea Eliade, todos os povos têm uma maneira peculiar de interpretar o mundo e suas origens, através dos mitos. Os mitos relatam acontecimentos que tiveram lugar num tempo primordial, no “tempo fabulosos dos começos”. Ainda segundo Eliade, são os mitos, que nos contam como algo se produziu e começou a ser. Desta forma, os mitos, símbolos, ritos e lendas denotam, antes de tudo, uma profunda insatisfação do homem com a sua situação atual, ou seja, com aquilo que se chama “condição humana”. As dicotomias “bem” e “mal” frequentemente encontradas nos mitos, revelam o mistério da totalidade como parte integrante do drama humano, dentro da memória coletiva.

Os mitos, contudo, só foram vistos como fontes para História a partir da construção de uma nova relação entre a memória e a história, como ressaltou Le Goff. Se a trinta anos atrás, uma obra como La Memoire Collective (1950) de Maurice Halbwachs, não despertou grande interesse na comunidade acadêmica, na década seguinte o quadro apresentou mudanças substanciais, graças a um movimentode reavaliação dos elos entre a história e a memória, resultado de um questionamento dos historiadores à visão tradicional da história, à qual se interessava apenas em manter viva a memória dos grandes fatos e feitos notáveis.


A partir da escola dos Annalles, os historiadores – voltados para novos problemas, novas abordagens e novos objetos – começaram a descortinar a relação de complexidade existente entre a história e a memória, relação eivada de subjetividade. Nesse sentido, foi de grande importância o diálogo com as Ciências Sociais, particularmente a contribuição de Max Weber, com o conceito de neutralidade axiológica, que trouxe à baila discussões que possibilitaram os historiadores considerar a seleção consciente ou inconsciente, as distorções e omissões, como fenômenos característicos da estrutura social da memória na construção dos grupos sociais.


Segundo Peter Burke, os historiadores se interessam ou precisam se interessar pela memória considerando-a sob dois aspectos: como fonte histórica e como fenômeno histórico. Assim, os mitos, elementos importantes da memória coletiva e do imaginário social, tornam-se fontes preciosas para a construção da história das mentalidades, que ao lado da história econômica, política e social, nos permite compreender as problemáticas humanas em outro nível complexidade, senão através de uma “História Total”, como preconizava os Annalles – mas de uma perspectiva holística, segundo a qual, de acordo com Edgar Morin, o todo não é o todo sem as parte, a parte não existe sem o todo, mas a parte também é um todo dentro desse emaranhado que é a tessitura da história humana.

sábado, 4 de agosto de 2007

Fontes Históricas


Para uma compreensão mais ampla das fontes históricas, faz-se necessária uma incursão através das transformações da História ao longo do tempo. A história tradicional, preocupada com os grandes feitos dos “grandes homens”, focalizava apenas a história nacional e internacional, jamais tratando do regional. Para a tradição histórica é suficiente saber os acontecimentos. Com os acontecimentos privilegiados pelo olhar tradicional referem-se aos fatos políticos e econômicos proeminentes, as fontes tradicionais consideradas seguras para a história são as fontes oficiais, registros oficiais tidos como “verdades absolutas”. As fontes, segundo a tradição, são inqüestionáveis, pois, como diria Ranke: “contra fatos não há argumentos”.

Rompendo com os paradigmas da tradição histórica, surge na França a Nouvelle Histoire (Nova História), cujo interesse voltava-se para o conhecimento das estruturas que permeiam as transformações do mundo e as relações humanas ao longo do tempo; considerando os diversos personagens qie precisam ser estudados, inclusive o homem comum e o cotidiano. A Nova História volta seu olhar para toda a atividade humana, pois considera que tudo é história.

A base filosófica da Nova História é a idéia de que a realidade é social e culturalmente constituída. Surgem novas correntes, como a história das mentalidades. Considerando as novas abordagens e os novos objetos é natural a emergência de novas fontes históricas, pois, se tudo é história, muitas outras evidências da ação humana podem contribuir para a compreensão dos diferentes processos históricos: fontes visuais, estatísticas, materiais, bem como as fontes orais, utilizadas no resgate de memórias individuais ou coletivas, que possibilitam uma visão mais concreta da dinâmica de funcionamento e das várias etapas da trajetória dos grupos sociais aos quais pertencem os entrevistados.

Mas as fontes, ao contrário do que pregava a tradição, não falam por si só. Elas devem ser questionadas. Eis a importância do olhar do historiador, uma aspecto que ressalta outro importante paradigma quebrado pela Nouvelle Histoire: já não se buscam mais verdades absolutas, mas diferentes versões das representações de verdades, evidenciadas pelo poder da História de realizar indagações acerca dos fatos e das estruturas relacionais que com estes se comunicam. Assim, as novas fontes e o novo tratamento das fontes tradicionais, combinados, permitiram a emergência do relativismo cultural: um novo olhar presente nas Ciências Humanas e, sobretudo, na História.